João Moreira Salles: “Me interesso menos pelo tema, e mais pela maneira de tratá-lo”

O documentarista compartilhou reflexões sobre narrativa e linguagem cinematográfica durante encontro com alunos no Teatro Unisinos, em Porto Alegre

Crédito: Giordano Martini / Agexcom

Na noite de terça-feira, 20 de maio, o Teatro Unisinos, no campus de Porto Alegre, recebeu o documentarista e produtor de cinema João Moreira Salles.

O convidado falou sobre produção e análise cinematográfica documental para uma plateia composta de alunos dos cursos de Jornalismo, Produção Audiovisual e Realização Audiovisual da Unisinos, além de professores e interessados no assunto.

O encontro fez parte do piauí na Universidade, evento organizado pela revista paulista, que proporciona uma conversa de parte da equipe de redação da publicação com estudantes em todo o país. Salles é um dos fundadores do veículo. O professor Milton do Prado, da Escola da Indústria Criativa, participou da discussão como mediador.

Um início por acaso

Salles contou que iniciou sua trajetória como documentarista no final da década de 1980 por causa de seu irmão, o cineasta Walter Salles. Após se formar em Economia, foi aceito em um programa de doutorado nos Estados Unidos, que pretendia iniciar alguns meses depois. Porém, Walter tinha voltado do Japão, para onde viajou a fim de testar uma câmera que tinha sido recém-lançada pela Sony.

João Moreira foi convidado pelo irmão a ajudar nas edições das filmagens, que seriam transformadas em uma série para a TV Manchete, que tinha acabado de ser inaugurada. Ele topou, e passou a colaborar no roteiro. “A série foi um sucesso, e eu não viajei. Não fui para os Estados Unidos, e não fiz o doutorado”, lembrou.

Como a TV Manchete estava iniciando seus trabalhos e não havia uma organização para edição e gravação, os irmãos João Moreira e Walter Salles decidiram criar a VideoFilmes, em 1987. Com o sucesso do programa sobre o Japão, o governo chinês convidou a novíssima produtora brasileira a fazer gravações sobre o país asiático. Pedido aceito, Walter manda uma equipe na frente, para iniciar as gravações, e João Moreira assumiu a direção das imagens. O programa foi exibido no ano seguinte.

Seu próximo trabalho produzido foi “América”, em 1989, um documentário que falava sobre a história dos Estados Unidos. Durante a produção, Salles ficou em torno de 50 dias hospedado em uma van com uma equipe de filmagem, trabalhando cerca de 18 horas por dia. “E algumas coisas eu acho que aprendi. E ali eu comecei, de fato, a me sentir um documentarista mais competente”, recordou.

Crédito: Giordano Martini / Agexcom

Encontros fundamentais

Após terminar seu último trabalho com a TV Manchete, Salles iniciou um novo projeto em 1992, intitulado “Santiago”, uma obra documental que fala sobre a sua vida pessoal através das histórias do mordomo da família. Porém, em determinado momento da produção, o olhar do diretor reconheceu: não estava funcionando. “Não parecia com um filme”, disse Salles. As filmagens, então, foram interrompidas.

Foi em 1999 quando Salles foi convidado pelo jornalista Amir Labaki para participar de uma mesa redonda com diferentes diretores. Entre eles, Eduardo Coutinho, que foi essencial para Salles entender novas formas de documentar. Até aquele instante, com suas produções se destacando pela estética visual, conhecer Coutinho funcionou como uma virada de chave. “Meu cinema era conduzido pela vida, a vida como ela acontece, suja”, avaliou Salles.

Coutinho, então, começou a trabalhar com a VideoFilmes, e seguiu até a sua morte, em 2014. Durante esse tempo, Salles aprendeu muito com seu amigo, como, por exemplo, a tirar os elementos fundamentais do cinema. “Ele exclui a narração, a trilha sonora, a locação, e chega a eliminar o enredo no filme ‘O fim e o Princípio’, que é absolutamente maravilhoso”, elogiou. O documentarista viu que era possível criar um cinema que trata do Brasil profundo com recursos mínimos.

Reflexões sobre o material bruto

Salles resolveu retomar “Santiago”, que estava parado há 13 anos. Analisar o material que ele tinha feito tanto tempo atrás, mas com uma nova bagagem de conhecimento adquirida, o ajudou a entender melhor onde ele iria começar a trabalhar. “A principal mudança tinha sido o fato de que passei a me interessar menos pelo tema e mais pela maneira de tratá-lo”, explicou Salles.

O cinema do documentarista mudou completamente, passando de “imagem” a “como contar uma história”. Salles usou o exemplo da Revolução Cubista, movimento artístico das artes plásticas que surgiu no início do século XX em Paris. “A forma em si não é importante, mas sim como o artista irá retratar ela, trazendo outras perspectivas em cima do material que está sendo utilizado”, observou. “Não há nada de revolucionário em pintar uma cadeira. Mas há sim em ver essa cadeira de várias perspectivas no mesmo plano”.

“Santiago” ganhou o subtítulo “reflexões sobre o material bruto”, que traduz as novas perspectivas de como Salles observava o que tinha gravado como filme na década de 1990. Mais velho, e com o material já transformado em arquivo, ele teve um novo entendimento: o que deixava a história mais rica era o que acontecia antes e depois da ação, durante suas interações com o próprio Santiago, o mordomo.

O documentário se tornou mais espontâneo do que o esperado, tanto que Salles se viu como personagem, não apenas como produtor. Outro ponto destacado pelo cineasta é o efeito “arquivo”. Segundo ele, muitas vezes não entendemos, em um primeiro momento, o que estamos gravando, e como observar esse material. “O arquivo está sempre vivo, te dizendo coisas que são importantes no agora, e não quando estava sendo feito”.

Crédito: Giordano Martini / Agexcom

Coutinho: um amigo para se lembrar

Durante toda a conversa, João Moreira Salles não deixou de lembrar a sua relação com seu amigo Eduardo Coutinho, e como ele impactou sua percepção do que seria cinema. Salles destacou como as obras de Coutinho se comportam: um cinema que dá espaço para a fala, sobretudo, a memória. “O trabalho da memória é esquecer e preencher o espaço esquecido com o material que é inventado, mas não mentido, e, sim, inventado, fabulando”, sublinhou o cineasta.

Falar no trabalho de Coutinho estimulou Salles a diferenciar o documentário do jornalismo. Para ele, os dois assuntos colidem, mas desempenham papeis bem diferentes. Para o jornalismo, é essencial estar em dia com os fatos, porém os documentários conseguem trabalhar mais com a ação. “Se o depoimento teve força e, por força, eu quero dizer, convenceu quem ouviu porque convenceu quem falou, isso é o documentário em ação”, ensinou.

Desde 1999, Salles e Coutinho trabalharam juntos até a última obra produzida pelo amigo, “Últimas Conversas”, lançada de forma póstuma à sua morte, em 2015. Salles lembra que esse projeto foi desafiador desde o início para Coutinho, que tinha familiaridade em trabalhar com pessoas de idade, com histórias baseadas em lembranças. Agora, conversando com jovens que estavam terminando o terceiro ano do Ensino Médio, Coutinho eliminava o essencial dos seus filmes: a memória. “Os jovens não se lembravam de nada por estarem vivendo tudo. Eles não tinham tempo de se lembrar”, recordou Salles.

Eduardo Coutinho deixou as anotações com as transcrições das entrevistas do seu último filme. No velório do amigo, Salles e Jordana Berg, amiga e montadora dos filmes de Coutinho, decidem iniciar a edição de “Últimas Conversas”.

Após alguns meses, “que praticamente foi psicografado”, comentou Salles entre risos ao lembrar da época, ambos notaram que havia algo errado na edição; o filme tinha tudo, menos o Coutinho. Sobre responsabilidade de Salles e Jordana, o amigo foi inserido na segunda edição feita do filme como um entrevistado. “Ele dizia que tudo gravado estava péssimo, e que não iria a lugar nenhum”, disse Salles.

No final do filme aparece uma criança, e é ela o último personagem de todos os filmes do Coutinho. Por mais simples que possa parecer, ela teve um peso significante para a obra como um todo. Representava o cerne de suas ideias, pois trazia a palavra em seus primeiros momentos da vida. “O cinema do Coutinho é o cinema da palavra, e a fonte da linguagem é a criança, que aprende a falar trocando as palavras, inventa coisas que não existem. É maravilhosa”, explicou o cineasta.

Para os futuros documentaristas

Para quem estava na plateia acompanhando, não faltaram motivos para se inspirar. A experiência de vida de Salles, tanto como documentarista quanto jornalista – ele foi um dos fundadores da revista piauí –, mostrou como é possível repensar os conceitos de como contar narrativas.

Dentre os espectadores, estava o aluno do curso de Produção Audiovisual, Gabriel Madrid. Segundo ele, Salles mudou suas perspectivas sobre o que seria o documentário. “Às vezes, temos a impressão de que o cinema é muito engessado, porém Salles mostrou exatamente o contrário. Frequentemente se fala sobre ideias novas, mas dificilmente sobre uma nova ideia de como mostrar a história a elas”, comentou o estudante.

Salles não esconde seu entusiasmo ao falar para as novas gerações e sobre como elas irão encontrar novas formas de contar histórias. “É muito bom saber que essa garotada se interessa não só pela história que a gente conta, mas pela maneira como contamos elas. O tema não é, para mim, tão interessante quanto a forma de narrar ele, tanto no jornalismo quanto no documentário”, avaliou o cineasta.

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