O mais jovem patrono da Feira do Livro é, também, o primeiro escritor negro nessa posição

Em entrevista para o Portal Mescla, Jeferson Tenório conta sobre a relação com a escrita e as referências da Literatura Negra

Crédito: Diego Lopes / Feira do Livro de Porto Alegre

Esse ano, pela primeira vez, a Feira do Livro de Porto Alegre, que vai até este domingo, dia 15, não acontece na Praça da Alfândega. A 66ª edição do evento está em formato virtual e o tema é “Janelas abertas para a Praça”. Sem a multidão que costumava caminhar pelo Centro Histórico da capital, o evento precisou se reorganizar e levar a Feira para a casa das pessoas. A edição conta, também, com Jeferson Tenório como Patrono – o primeiro negro a ocupar a posição em 65 edições. Por isso é, também, histórica.

Com 43 anos, Jeferson é o mais jovem escritor entre a lista de patronos que a Feira do Livro coleciona ao longo dos anos. O escritor é natural do Rio de Janeiro e chegou em Porto Alegre aos 13 anos. Jeferson diz que começou a escrever antes de se tornar leitor. Aos 18 anos, por exemplo, redigiu uma novela, mas, conta, era muito ruim, já que não tinha experiência com a Literatura. Foi apenas na universidade, quando realizou a graduação em Letras, que passou a conhecer os cânones e, consequentemente, desenvolver uma escrita literária. Hoje, cursa doutorado, além de ser professor em Porto Alegre.

A universidade foi importante para tornar Jeferson o escritor que é hoje. O tornou leitor e possibilitou ter experiência para escrever. Foi, também, na graduação que ele começou a escrever poemas e contos. Após ganhar alguns concursos, publicou o primeiro romance (2013) – inspirado em um de seus contos.

Autor de O beijo na parede (2013), Estela sem Deus (2018) e O avesso da pele (2020) -, Jeferson conta, nesta entrevista, que começou a pensar em trabalhar com narrativas mais longas depois que em uma aluna, ao ler um de seus contos, sugeriu para o professor aumentar aquela história. A partir de quatro páginas ele transformou Cavalos não choram em O beijo na parede, que conta, em 130 páginas, a história de João. Por tudo isso, Jeferson se tornou uma referência para todos que acreditam no conhecimento e na cultura para formação de sujeitos.

O Mescla conversou com o patrono da Feira do Livro sobre sua trajetória como contador de histórias, como professor e, também, pesquisador. Dentre os assuntos abordados no papo estão a Literatura Negra e a importância da escolha de Jeferson Tenório para o patrono desta edição da Feira do Livro.

Mescla: Eu queria começar, então, ouvindo um pouco sobre a tua trajetória enquanto escritor.

Jeferson Tenório: Tá. Então, eu comecei na adolescência, escrevendo diários. E depois, aos 18 anos, eu escrevi uma novela – a mão, porque não tinha máquina… nem máquina, nem computador, né? Mas era era um texto muito ruim ainda, porque eu não tinha experiência com Literatura, eu não era um bom leitor. E depois quando eu entrei na faculdade, em 2001, eu comecei a escrever poemas, participei de um concurso, daí eu ganhei o concurso de poemas. Depois, eu fiquei um bom tempo sem escrever, até que, em 2006, eu ganhei um outro concurso de contos. E a partir daí, eu comecei a pensar em escrever narrativa longa, em escrever romance e tal. Então, em 2013, eu publiquei no primeiro romance, O beijo na parede. Cinco anos depois, eu publiquei Estela sem Deus e, agora, a publicação do O avesso da pele.

Mescla: Com que idade, mais ou menos… Tu falou na adolescência… mas lembra com que idade foi isso?

Jeferson Tenório: Eu já morava aqui. Eu vim para cá com 13 anos, então, começou por aí, com 14, 15 anos. Dos 14 aos 18 anos, eu tive esses diários, que eu escrevia… Eu ainda tenho alguns deles guardados comigo. Geralmente eram coisas bobas, assim, não era ainda uma escrita literária, era mais um registro mesmo, mas eu sentia essa necessidade de escrever.

Mescla: Era mais um relato do teu dia, do que acontecia?

Jeferson Tenório: Era mais com as pessoas que eu conheci, que eu conhecia, algumas impressões, também de pessoas.

Mescla: E com quantos anos tu tá agora?

Jeferson Tenório: Tô com 43.

Mescla: Tu também é professor e pesquisador, não é? Tu tá fazendo o teu doutorado ainda, como é conciliar tudo isso? Ou não precisa conciliar, essas coisas se complementam? Como é essa parte da tua vida?

Jeferson Tenório: Então, é uma parte bem difícil, assim, de conseguir conciliar. Principalmente, depois do lançamento desse último livro em que eu acabei tendo muitos compromissos, mesmo estando na pandemia. Há poucos dias, também, defendi a minha qualificação (do doutorado). Eu ainda dou aula em escolas, tem a minha família… Então, tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo e eu tô tendo bastante dificuldade de conseguir dar conta disso tudo. Claro que a gente acaba tendo que abrir mão de algumas coisas, alguns convites que eu sei que eu não vou conseguir comparecer, então, em outros momentos até iria, mas agora não tem como. Então, é isso que eu estou fazendo, tentando administrar a minha agenda de modo que eu consiga atender as pessoas com qualidade porque não dá para aceitar tudo e fazer qualquer jeito. Por isso, eu também saí de uma das escolas onde eu estava. Agora eu trabalho menos horas e vou abrindo mão das coisas até conseguir fazer tudo que eu preciso.

Mescla: Como que tu te encontrou na literatura? Tanto enquanto escritor, quanto como leitor? Qual é a tua relação com a literatura?

Jeferson Tenório: A minha relação com a Literatura foi tardia, eu não fui um bom leitor, nem na infância, nem na adolescência. Os livros não me atraíam. O meu letramento estético começou com o hip hop e o rap. Eu cheguei a ter um grupo de rap aqui em Porto Alegre, fiz algumas apresentações e foram suficientes para eu entender que não era o meu caminho. E aí, então, quando eu entrei na faculdade, comecei a ter contato com a literatura e, principalmente, essa literatura mais ocidental. Eu comecei a ler a literatura grega, essa mais canônica. Aí foi Shakespeare, Cervantes, Homero, toda essa Literatura mais eurocêntrica. E só mais tarde, já no fim da minha graduação, é que eu comecei a ler outras coisas fora desse eixo. Comecei a ler Literatura africana, comecei a ler autores negros, mas isso foi bem depois. Então, acho que a faculdade foi esse momento de eu ser apresentado à essa Literatura e me tornar um leitor mesmo, de fato.

Mescla: Esse momento foi essencial para quem tu é hoje. Foi esse teu encontro com a leitura na graduação.

Jeferson Tenório: Isso. Foi essencial para eu me tornar um leitor.

Mescla: Como é que surgiu essa ideia de “ah, vou escrever um romance agora, vou sentar e vou fazer uma narrativa mais longa”?

Jeferson Tenório: Ela surgiu a partir de um conto chamado Cavalos não choram. Ele foi um conto que eu escrevi para um Concurso Literário para a Universidade do Paraná e era um concurso chamado Paulo Leminski. Eu inscrevi, então, esse conto. Ele tinha, acho, três ou quatro páginas, aí ele tirou terceiro lugar, eu acho, nesse concurso. Eu me lembro que, nessa época, eu era professor do EJA – Ensino de Jovens e Adultos – e uma das alunas tinha lido meu conto naquele momento em que os blogs começaram a surgir. Ela me falou desse conto e me disse: “porque tu não continua essa história? Ela é tão boa”. E eu fiquei com aquilo na cabeça: “bom, quem sabe eu estico um pouco essa história” e foi que aconteceu. Eu acabei esticando essa história a 130 páginas até se tornar O beijo na parede. Mas ele surgiu a partir desse conto e desse pedido dessa aluna para que eu esticasse a história e chegasse, então, nesse personagem, que é o João.

Mescla: Quando é que tu começou a te enxergar como escritor? Tu lembra de algum momento específico que tu pensou “agora eu sou um escritor” ou isso sempre esteve presente?

Jeferson Tenório: Eu acho que ainda não tenho, assim, de ser um escritor. Eu me sinto mais um contador de histórias, alguém que conta histórias e procura manter a atenção dos leitores, porque eu, em sala de aula, também sou um contador de histórias, né? Eu vivo contando, inventando história para os meus alunos. Então, eu me considero mais um contador. Mas, de maneira formal, porque é o modo como as pessoas me apresentam, se deu quando eu publiquei o primeiro livro, O beijo na parede. E aí, eu vi ali as chamadas, as entrevistas e começavam a me chamar de escritor. E aí, eu meio que fui aceitando. Não foi uma coisa que eu sempre quis, foi meio acidental, também. E eu vi que era necessário ter essa nomenclatura de escritor, para as entrevistas, para as pessoas eu sou escritor, né? Mas, no meu íntimo, eu sou contador de histórias.

Mescla: Se tu estivesse em uma aula, já que tu é professor, e tu precisasse descrever o que tu escreve, mas, também, descrever a Literatura Negra de um modo geral, como tu descreveria isso?

Jeferson Tenório: Nossa, é uma coisa bem difícil, porque não há um consenso do que seria uma Literatura Negra, ou uma Literatura Afro-Brasileira. Aliás, tem até um problema teórico aí, se chama de Literatura Negro Brasileira, se é Literatura Negra, ou se é Literatura Afro-Brasileira. Então não há um consenso nem quanto à nomenclatura. E, também, tem que estabelecer critérios, né. Então, na Literatura Negra são só pessoas negras que escrevem? Ou seja, uma pessoa branca pode fazer Literatura Negra? Então tem várias coisas envolvidas aí. O que dá para dizer é que a gente tem que separar o que é literatura de autoria negra – e aí eu só vou levar em consideração pessoas que se autodeclaram negras – e uma literatura que seja dita Literatura Negra, ou seja, pessoas brancas também poderiam escrever textos em que aparecem marcas de uma cultura negra ou de matriz africana. Que é o caso, por exemplo, do moçambicano Mia Couto, um escritor branco, mas que tem uma literatura, digamos, negra. Então, é difícil porque é bastante complexo. Mas o que eu faço, eu acho que é uma literatura negro-brasileira, por eu ser um autor negro e, também, por ter personagens negros e toda a problemática que aparece sobre as questões raciais no meu livro.

Mescla: Qual é a importância, para ti, de ter esse tipo de literatura, uma literatura negro-brasileira?

Jeferson Tenório: Eu acho que a importância é poder contar a história do Brasil, através da literatura, de um outro ponto de vista. Acho que até há pouco tempo, a gente tinha apenas uma versão dessa história do Brasil e uma versão branca, uma versão de classe média e que não tinha essa outra parte da história do Brasil, né? Então, acredito que as literaturas escritas por mulheres negras, talvez, tenham a oferecer muito mais do que a literatura escrita por homens negros. Porque é um outro ponto de vista, como a Conceição Evaristo falou, das escrevivências, ou seja, essas experiências que, por muito tempo, foram silenciadas. Elas, agora, emergem e mostram o quanto é importante a gente ter esse outro ponto de vista para ampliar o que a gente entende por Literatura e, por consequência, a história do Brasil.

Mescla: E, quando tu começou a ter contato com a literatura na graduação, como foi, para ti, começar a ter contato e ler essas escritas não tão populares?

Jeferson Tenório: Foi um momento de descobertas e redescobertas. Entender, por exemplo, que o Machado de Assis era um autor negro, entender que Lima Barreto era um autor negro. Começar a ler Carolina Maria de Jesus, conhecer a Conceição Evaristo. Então, foram momentos que, talvez, tenham passado na minha graduação, mas não havia essa marca de me dizerem “olha, isso aqui são autores negros” e isso, talvez, fizesse bastante diferença, na época, para mim, de poder saber que existia. Mas foi gradual essa entrada dos autores negros, africanos, né, na minha vida. Até pouco tempo, eu não tinha lido autores importantíssimos, como a Toni Morrison, por exemplo, James Baldwin, Ralph Ellison, Luiz Gama. Luiz Gama eu fui conhecer há dois anos. Então, são autores que passaram batido, justamente pela formação que eu tive na minha graduação, que, simplesmente, isso não era uma questão.

Mescla: Tu uma comentou, quando a gente falava sobre a Literatura Negra, sobre separar a Literatura Negra por autoria negra e não negra. E tu comentou agora há pouco sobre o Machado de Assis, e ele foi embranquecido. O que isso significa para a Literatura Negra este embranquecimento?

Jeferson Tenório: O que aconteceu com o Machado, é que ele é o escritor mais importante que nós temos na Literatura Brasileira, mas em uma sociedade que tem o racismo como sua base, é muito difícil reconhecer que o maior escritor que nós temos era negro. É o que eu vejo no Machado… eu tenho uma influência machadiana, não só na escrita, mas, também, em como ser um homem negro. O Machado de Assis é um exemplo, para mim, porque eles viveu no momento em que o movimento escravagista era vigente. Então ele participou desse momento, e eu fico imaginando o quanto não foi difícil para ele, também, conseguir fazer o que ele fez, sair lá do Morro do Livramento, aprender francês praticamente sozinho, depois vira tipógrafo, vai trabalhar como funcionário público e funda Academia Brasileira de Letras. E tendo um grande reconhecimento, né? Quando ele morreu, o cemitério ficou cheio de pessoas que foram lá homenageá-lo. Aí eu fico pensando que ele só conseguiu isso, porque ele soube jogar o jogo da sociedade, que era bastante cruel, mas ele foi quase como um capoeirista, como se ele pudesse entrar no jogo e recuar, agachar e bater, quando tem que bater. E isso é muito dos textos dele. Sabe-se muito pouco da vida íntima dele, mas nos textos é possível ver essa postura de alguém que conhece o jogo, conhece as regras e eu acho que isso é muito representativo para mim, como homem negro e como escritor negro, de me espelhar no Machado de Assis para conseguir fazer o que ele fez. Isto é, saber o momento de recuar e, depois, saber o momento de avançar, porque o racismo é tão complexo e tem tantas camadas que, às vezes, é preciso ter um jogo de xadrez para movimentar as peças na hora certa.

Mescla: A gente sempre viveu numa sociedade racista e com diversos tipos de preconceitos e agora temos esses movimentos aumentando, principalmente, nesse ano, o Black Lives Matter por exemplo. Qual é a importância das pessoas estarem falando mais sobre isso? Tu vê que vai ter algum avanço? Que tipo de avanço isso pode ter?

Jeferson Tenório: Olha, eu não sou muito otimista quanto aos avanços, porque, quando eu comecei a escrever O avesso da pele, era 2016, depois de uma abordagem policial que eu sofri aqui em Porto Alegre e eu pensei “eu quero escrever essa história”. Em 2017, eu assino contrato com a editora e naquele momento a gente ouvia falar de abordagens policiais, de pessoas que acabavam morrendo nas abordagens e tal, mas não tinha toda essa visibilidade que a gente tá tendo hoje. Mas aí eu parei para refletir e pensei que não estava em evidência para quem? E, hoje, está em evidência, também, para quem? Para a população que não sofre essas violências, a violência policial está em evidência, mas para a população negra isso sempre esteve evidente, sempre foi um problema para nós. Desde que a gente começa a caminhar na rua sozinho, a gente corre o risco de ser abordado, ser preso, ser espancado, ser morto, isso é uma realidade. O que tá acontecendo agora é que as pessoas estão filmando mais, as pessoas estão denunciando, existe, também, o advento da internet em que a gente pode escrever uma coisa e isso ganha uma proporção muito grande. E os autores acabaram entrando aí nessa esteira, porque há, também, uma vontade de ler essas experiências. Então acredito que, hoje em dia, exista essa visibilidade, mas eu só tenho medo que isso se torne uma onda, uma moda, e que no ano que vem, “ah não, agora a gente vai falar de outra coisa porque já falamos dos negros, né, já tá resolvido essa história aí, agora, vamos partir para outra coisa”, esse é o meu medo. Então, nesse sentido, que eu não sou muito otimista.

Mescla: Tu, provavelmente, teve dificuldade enquanto escritor para começar a escrever, contar histórias. Quais foram essas dificuldades? E elas, de alguma forma, estavam ligados com esse racismo dentro da nossa sociedade? Como é que foi isso?

Jeferson Tenório: Quando eu começo a pensar nessas questões, ela já é, também, tardia. Na verdade, quando eu escrevi O beijo na parede, só depois, quando eu terminei o livro, é que eu me dei conta que a maioria dos personagens eram negros, por exemplo. Eu dei o meu livro para um escritor, um amigo meu ler e foi ele quem me chamou atenção. E eu não me dei conta disso, porque era natural que os meus personagens fossem negros, porque as pessoas que eu convívia eram pessoas negras. Então, pra mim, era muito coerente que meus personagens também fossem negros. Então, não foi muito consciente essa chegada aos personagens negros. Já no segundo livro, Estela sem Deus, aí foi bem consciente, eram coisas que eu queria, de fato, marcar, racionalizar, também as pessoas brancas, não só as pessoas negras, isto é, dizer, descrever, quem é cada um. E O avesso da pele aí, eu já faço uma faz uma espécie de tese sobre o que eu penso das questões raciais no Brasil. O avesso da pele é uma tese de que nós precisamos falar sobre o preconceito racial, mas não podemos esquecer do nosso avesso. Ou seja, daquilo que é subjetivo, aquilo que nem a polícia, nem o Estado vão ter acesso, porque algo único, singular, só nosso e é isso que nos torna humano e não a cor da pele. Essa seria a tese, mas para chegar nessa tese, eu tive que fazer toda essa caminhada, com os outros dois livros.

Mescla: Teve um processo pra tu chegar na narrativa do último livro. Começou não sendo uma coisa consciente, depois foi… E o que tu acha que isso diz da tua evolução enquanto escritor? Tem um marco de diferença entre o Jeferson que escreveu o primeiro romance pro Jeferson de agora?

Jeferson Tenório: Ah sim, hoje em dia eu tenho muito mais instrumentos para construir uma história do que eu tinha há alguns, há, sei lá, 10 anos. O que, por um lado, é bom. O domínio da escrita é melhor, quando se tem mais consciência da manipulação que eu faço com a linguagem, mas, por outro, também, talvez perca um pouco o encantamento do fazer literário, né. E eu digo tanto quanto leitor, quanto escritor. Ou seja, dificilmente, hoje em dia, eu vou ter um livro que vai me causar um grande arrebatamento, porque quando eu leio, eu já leio com aquele olho viciado de quem estuda teoria, estuda personagem, estrutura do texto. Então eu tenho já esse olhar mais técnico. E na hora da escrita também, eu tenho muito essa questão técnica. Tanto que, agora nos últimos meses ou de um ano para cá, quando eu tenho que escrever algum texto ficcional, eu faço algum trabalho de imersão, de sensibilização. Então eu começo a ler muito poemas e tento decorar poemas, eu escuto muito música instrumental, muita música clássica e eu passo dias fazendo isso para que eu possa me afastar desse olhar técnico e me aproximar um pouco dessa atmosfera mais poética, mais lírica, mais ficcional, porque, se não, eu entro no texto de forma muito técnica e eu acho que deixa o texto muito superficial. Então eu preciso dessa imersão para conseguir produzir uma literatura que se aproxime daquela de quando eu comecei a escrever, que era um Jeferson sem muita bagagem teórica.

Mescla: Então teve essa mudança.

Jeferson Tenório: Teve essa mudança. Acredito que para escrever ficção, a gente precisa abandonar um pouco a teoria, abandonar um pouco tudo o que eu acabei estudando no mestrado e, agora, no doutorado para conseguir fazer literatura, eu acho que é igual a tudo na vida, principalmente com coisas muito subjetivas, os afetos, a criação, a gente tem que deixar um pouco a teoria de lado e viver aquilo, porque senão fica uma coisa muito pensada e muito técnica e literatura não se faz apenas com técnica, tem uma outra coisa e é essa outra coisa que eu busco.

Mescla: Tu lembra como foi receber a notícia que tu seria o patrono da Feira do Livro?

Jeferson Tenório: Sim, foi há alguns dias, em setembro, que eles me disseram que eu tinha sido escolhido. O presidente da Câmara do Livro me ligou e, no início eu até não entendi muito bem, porque eu achei que eu tava sendo convidado para ser uma das pessoas iam votar no Patrono, não que eu fosse o Patrono. Aí ele falou muito rápido, eu pedi pra ele repetir e aí eu fiquei bastante surpreso com a escolha e fiquei, também, muito feliz. Não tem como não ficar feliz, porque eu sei da importância desse papel e do quanto as pessoas gostam da Feira do Livro, mesmo quem não frequenta muito a Feira do Livro, sabe, a importância do patrono. Ainda mais em uma Feira como essa que tá marcando uma mudança tanto de plataforma, como dos autores que estão presentes, das discussões, dando ênfase mais na diversidade e o fato de eu ser o primeiro Patrono negro depois dos 65 edições. Então isso é muito simbólico, muito importante e eu fiquei muito feliz.

Mescla: Já que a gente está falando de tu ser a figura Patrono da Feira do Livro, de tu ser o primeiro patrono negro depois de 65 edições, mas, também, te considerar um contador de histórias, o que tu diria para alguém pensando em começar a escrever, pensando em entrar nesse mundo?

Jeferson Tenório: Eu acho que a primeira coisa é ler muito, né. A gente precisa ler bastante e acho que ler é mais importante do que escrever, sempre. Só através da leitura que a gente consegue produzir alguma coisa, acho que a segunda coisa é ter paciência e, também, disciplina. Ninguém escreve um livro sem disciplina e paciência, seja qual for o gênero, um livro de poemas, um livro de contos, é necessário paciência, porque a escrita pede esses momentos de espera. Então, é necessário escrever, deixar, aguardar um pouco. Vai viver, vai fazer outras coisas, depois volta de novo para o texto. Quando se resolve, de fato, escrever o texto, é preciso disciplina. E quando eu digo isso, é preciso ter determinadas horas para fazer isso. Quando eu fiz o meu primeiro livro, O beijo na parede, eu trabalhei durante três meses, nos meses das minhas férias escolares, durante oito horas, para conseguir terminar o livro. E eram oito horas mesmo, então eu trabalhava quatro horas de manhã e quatro horas de tarde. E com paciência, tem dia que não rende, tem dia que a gente escreve apenas uma frase, tem dia que vai duas páginas. Mas eu acho que é isso, é leitura, paciência, disciplina.

Mescla: E quais são as suas referências enquanto escritor?

Jeferson Tenório: Elas foram mudando ao longo do tempo. E, às vezes, elas voltam com mais força. Mas há alguns livros que sempre ficam. Acho que o Hamlet do Shakespeare é um livro que me marca muito. Inclusive, O avesso da pele é um pouco uma homenagem ao Hamlet. Eu também tenho Dom Quixote que também me marcou muito. E o Machado de Assis, né, toda obra dele. É uma obra que me encanta muito e que me influencia muito, é uma referência. Depois, tem os contemporâneos, a Conceição Evaristo, a Carolina Maria de Jesus, o James Baldwin – escritor norte-americano -, a Toni Morrison, o Paul Auster, que é um escritor que eu gosto muito. Então, são escritores que são referências, mas eles vão oscilando. A cada momento um se torna mais referência que o outro dependendo do momento que eu tô passando.

Mescla: Tu comentou que, para escrever ficção, precisa tirar a cabeça da teoria e tu faz essa imersão. Então, entrando no tema da ficção, tu acha que a ficção ajuda a enfrentar os problemas da sociedade?

Jeferson Tenório: Eu acho que pode muito pouco, no sentido mais pragmático da coisa, né. Eu sempre digo que ninguém vai ler O avesso da pele, por exemplo, e vai virar antirracista no dia seguinte. Eu acho que o que a literatura faz é tentar despertar, sensibilizar as pessoas para algum tipo de problema que o livro tá evidenciando ali. Porque a literatura opera em um outro nível, o nível da subjetividade, o nível da reflexão, um nível mais filosófico e isso acontece em outro tempo, que não é o tempo do embate, não é o tempo da luta. Eu acho que o que contribui mesmo para os problemas da sociedade é a criação de leis, a gente ter programas de governo, ter protesto na rua, protesto na internet. Isso são coisas mais do front, é como eu digo, pegar em armas. Mas a literatura não serve para isso. Ela serve para que a gente possa perceber o outro e exercer um pouco de alteridade. É nisso que eu acredito. E ela atinge de maneira muito profunda as pessoas, mas não é imediato. Ela vai ressoando até que ela vai se tornando, talvez, uma pessoa melhor, um cidadão melhor.

Mescla: Para finalizar a nossa conversa, eu queria saber: se tu fosse capaz de falar com o Jeferson de alguns anos atrás, aquele que começou a escrever contos, que logo depois tava escrevendo o primeiro livro, o que tu falaria para ele? Teria alguma coisa que tu, o Jeferson Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, diria para ele agora?

Jeferson Tenório: Aprenda a fazer lives logo, lá em 2020 vai ser importante (risos). O que eu diria para ele é: continua escrevendo. É o que eu digo para as pessoas que estão começando a escrever, né. Continua escrevendo, porque as oportunidades aparecem, embora sejam escassas, mas elas aparecem. E eu tive a sorte de as oportunidades aparecem, para mim, no momento em que eu tinha um texto pronto, por exemplo. Foi o que aconteceu com os três livros. O que acontece com algumas pessoas é que as oportunidades aparecem e aí a pessoa não tem o texto, que é o principal. Então, o que eu diria para o Jeferson de 10 anos atrás é: continua escrevendo, porque escrever vale a pena.

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