As letras de Camila

Conheça a aluna de Filosofia da Unisinos que escreve críticas literárias para o blog Livros Abertos

Quase como se desculpando, antes mesmo de observar o próprio retrato na câmera, Camila anuncia um “vou detestar” e emenda, em tom de graça, a seguinte sugestão: “Podemos fotografar apenas o livro?”. A convicção manifesta da estudante de Filosofia da Unisinos parte de uma reserva que só não demonstra em relação à literatura. No quarto de casa, onde habitam mais “estranhos conhecidos” do que ela mesma, passa todo o tempo possível entre as páginas e o editor de textos. Ali, sob os olhares de Milan Kundera, Victor Hugo, Álvaro Lins e muitos outros, vai desconstruindo histórias, abrindo parágrafos e costurando interpretações em suas críticas literárias. Chama isso de “caos bonitinho”. Bonito, não?

Camila nasceu em Novo Hamburgo e tem 26 anos. Depois de uma passagem pelos cursos de Biomedicina, Jornalismo e Letras, encontrou na Filosofia o caminho para analisar e compreender melhor a literatura. Hoje, mantém o site de críticas Livros Abertos e contribui com o blog de uma editora. Também atua como freelancer de revisão e redação de textos e participa do grupo de pesquisa Social Brains, da Unisinos.

Conheça a história de Camila na entrevista a seguir.

CONTATO COM A LITERATURA: Começou desde sempre, desde criança. Eu ganhava muitos livrinhos na infância, minha mãe achava importante me incentivar. Cresci lendo, não tinha televisão, só os livros e brinquedos. A adolescência foi mais difícil, porque a leitura não era muito incentivada na escola, era quase como um não incentivo. Mesmo assim, continuei lendo, nas horas mais impróprias, inclusive. As pedagogas do colégio não gostavam, tanto que, uma vez, ligaram para minha mãe para contar que eu estava lendo romances, como se fosse uma coisa horrível, como se estivesse pichando uma parede da escola. Tinha uns 15 anos na época.

O que a gente conhecia como literatura era Machado de Assis, José de Alencar, nada que fugisse daquele programa do vestibular. Por um lado, tudo bem, eles tinham essa obrigação de nos fazer passar, mas, por outro, não incentivavam a busca por um livro ou um autor com quem alguém pudesse se identificar. O intuito não era formar leitores. Pelo que vi, agora, essa mesma escola está estimulando mais as crianças pequenas, só não sei até que ponto as coisas mudaram. Desde a fase do colégio, não parei de ler, é uma coisa bem frequente.

FORMAÇÃO LITERÁRIA: Tudo veio com a prática, com a leitura, minha primeira formação vai ser a Filosofia. Eu tranquei o Jornalismo quando faltava pouco mais de um semestre para concluir o curso, acabei não terminando porque deixei para o final as cadeiras de rádio e televisão. Eu detestava falar em público ou em frente a uma câmera. Até pensei em pegar o diploma e começar a fazer outra coisa, mas não deu, desisti. Depois, tentei um semestre de Letras, vi que não era por aí e decidi ter a base na Filosofia mesmo, que não é apenas abstrata, também tem aplicação prática.

“Como consequência da educação excepcional, Lindon parece encaixar, com frequência e não tão metaforicamente assim, um livro entre ele e o mundo.”

Trecho da crítica de O que amar quer dizer, por Camila von Holdefer

O INÍCIO DO PROJETO: Eu gostava bastante das aulas de redação na escola e comecei a escrever assim, acho que peguei o gosto nessa fase. O início do blog foi quando trabalhei numa empresa de comunicação. Eu fazia redação publicitária e, certo dia, pedi para criar um blog sobre literatura. Qualquer pessoa que trabalhasse lá podia apresentar uma proposta como essa, e eu que achei que poderia contribuir falando sobre livros, mas não era nada muito pretensioso.

A sugestão do nome veio da minha chefe. Eu era bem tolhida na época, não tinha autonomia para publicar o que quisesse. Uma vez, escrevi sobre um livro em que duas mulheres se apaixonam na China comunista. Demorou cinco minutos para me ligarem e pedirem para tirar do ar. Outra vez, critiquei a biblioteca de uma universidade – que não era a Unisinos, aliás – mas a instituição anunciava no jornal. Despublicaram o texto automaticamente. Depois que saí da empresa, levei o blog comigo e migrei para um domínio próprio. Hoje em dia, não tenho essa preocupação, porque eu mesma edito, mas até então era complicado.

FORMATO: Ajusto ano a ano. Tento resenhar livros mais diversos, pegar aqueles menos comerciais, fora das listas de mais vendidos. Nem sempre dá certo. A ideia é construir uma crítica bem elaborada. Às vezes, consigo resenhar um por semana, às vezes, um pouquinho mais. Depende da extensão do livro e do quanto ele exige de mim. Agora, estou escrevendo um ensaio sobre Philip Roth, não sei se vou publicar no Livros Abertos.

PÚBLICO: Acho que meu público é, sobretudo, adulto, não vejo muita gente jovem. Pessoas mais velhas me escrevem bastante, professoras aposentadas, principalmente. Dos mais novos, acho que só quem também tem blog acompanha minhas publicações. Dos meus colegas da Filosofia, por exemplo, poucos sabem o que eu faço, já que divulgo apenas pelas redes sociais Twitter e Facebook.

PROCESSO CRIATIVO: Depende muito. Nos textos que escrevo para o blog da editora – que não é um espaço de crítica literária, mas, sim, de conversas sobre literatura -, uso referências do dia a dia, experiências de leitura, alguma coisa que tenha me impressionado, algo que eu possa desenvolver. Já em relação à crítica, vou marcando no livro o que preciso falar, coloco post-its de cores diferentes, desenho setas naquilo que vou citar entre aspas. O Graça Infinita [Companhia das Letras, 2014], meu Deus, coitado! Tive até que botar uma fita na lombada. A leitura é um estudo e a resenha nasce em cima disso. Eu não gosto da crítica de jornal, porque tem pouco espaço, e eu costumo aprofundar bastante minha visão sobre o livro.

“A outra providência de Catton está diretamente relacionada com a busca pela verdade de um relato — a chave interpretativa mais importante quando se leva em conta a proposta de Os luminares.”

Trecho da crítica de Os luminares, por Camila von Holdefer

ESCRITORES: O contato com escritores é bem frequente. Recebo livros de autores iniciantes, daqueles que publicam de forma independente, sem editora. Em geral, não tenho como aceitar, porque é muita coisa, é uma expectativa que não consigo cumprir. Quando vem por indicação de amigo, tento pegar. Um dia vai acontecer isso de alguém falar “tu não pode resenhar fulano porque é teu amigo”. Estou só esperando.

RESULTADOS: No verão, o número de acessos ao Livros Abertos cai pela metade, fica em torno de quinhentos por dia, o que é pouco. Nos outros meses aumenta, chega a mil. Gosto bastante do feedback que recebo. Em geral, ele é positivo. Tem gente que elogia, que agradece, e isso é muito bacana. Tem o feedback negativo também, mas esse só aparece quando falo mal de um livro que uma pessoa gostou. Tem gente que precisa que todo mundo goste das mesmas coisas. A resenha de O círculo [Companhia das Letras, 2014], então… mas, enfim, é normal.

APOIO: Minha mãe me dá todo o apoio, mas, de resto, o consenso é que resenhar e estudar Filosofia é “coisa de vagabundo”, que nada disso dá dinheiro. Muitas pessoas acham que meu trabalho é inútil, mas tudo bem. Dizem que eu deveria estar cursando Administração ou Medicina. Até tentei fazer Biomedicina assim que saí da escola, aguentei um semestre. Minhas primeiras aulas foram aquelas de dissecação. Não quero isso nunca mais na minha vida, não tenho condições. Dissecar, só se for um livro.

TRABALHO AUTORAL: Escrever livro? Talvez, mas só se for mistura de ensaio. Não conseguiria escrever um romance-só-romance. Gosto de comentar o livro dentro do livro, mas gosto mesmo é da crítica. Se eu publicasse alguma coisa mais autoral, seria nessa linha.

LEITURAS: Com frequência, acompanho o Jornal Rascunho, o Posfácio e o blog do Instituto Moreira Salles, que tem boas resenhas de cinema. Também leio Kelvin Falcão Klein, no Um túnel no fim da luz, alguma coisa do Ronaldo Bressane, que escreve O impostor, e o blog do Michel Laub.

“Talvez você chegue ao final do livro enquanto baba e rola de um lado para o outro, mas está tudo bem, pelo menos você leu uma grande sensação da literatura mundial e pode se alegrar com isso assim que alguém conseguir impedir você de enfiar a cabeça no forno.”

Trecho da crítica de Um outro amor, por Camila von Holdefer

FILOSOFIA: Serve para melhorar meu entendimento da literatura. Eu faço bastante o exercício de ler uma passagem da Filosofia para entender o livro. No Trabalho de Conclusão de Curso, que devo começar no próximo semestre, vou continuar a pesquisa da iniciação científica – eu tenho bolsa Unibic – sobre a compreensão da arte pelo ponto de vista da filosofia da mente. Vou fazer algo bem controverso, que é tentar provar que não existe mais o conceito de belo, ou que ele se tornou subjetivo. Categorizar a arte não é tão simples assim.

PESQUISA: Eu gosto bastante da Unisinos porque ela tem projetos de pesquisas muito bons. Eu participo do Social Brains, da professora Sofia Stein, e esse, para mim, é o melhor. Temos um laboratório de filosofia cognitiva. É como se fosse uma filosofia prática. Eu poderia, por exemplo, propor um experimento com pessoas, escaneando o cérebro e medindo as reações a uma obra de arte. E o curso, em si, cresceu muito. Entraram uns quarenta calouros no último vestibular, se não me engano. Está acontecendo um processo de desmistificação dessa área.

CRÍTICA LITERÁRIA: O espaço na imprensa tradicional está diminuindo, literalmente. Antes, a gente tinha como desenvolver mais o texto e, agora, há apenas uma área pequena dedicada à literatura, aos lançamentos, sobretudo. Não se vê mais a análise de um clássico, por exemplo, não há liberdade para um ensaio, com exceção de alguns cadernos muito específicos, voltados unicamente aos livros. Os vlogs também estão crescendo bastante. Não é bem minha forma de expressão, eu não faria, sou muito tímida até para fotos. Detesto foto. Mas tem bastante gente nessa área. A Tatiana Feltrin, por exemplo, tem mais de cem mil inscritos no canal dela do Youtube. Para a literatura, isso é significativo.

Eu gosto da crítica diletante, acho que é uma espécie de alternativa, mas nem sempre funciona. Hoje em dia, qualquer pessoa pode opinar em um blog, mas nem todo mundo consegue colaborar com um canal especializado em literatura. Para isso, é preciso um pouco mais de conhecimento, de embasamento.

Outra coisa: muita gente cria um blog de críticas apenas para receber livros das editoras. Na minha opinião, esse não é o caminho. Às vezes, a pessoa acaba se submetendo quase a um regime de escravidão, tem pouco tempo para resenhar e não recebe nenhum retorno financeiro por isso, além de ficar “condicionada” aos trabalhos de uma única empresa. Não é com todas as editoras que isso acontece, mas existe, sim.

“O livro começa mal, e daí para frente é ladeira abaixo.”

Trecho da crítica de O círculo, por Camila von Holdefer

VIVER DE PALAVRAS: Não tem como, não no Brasil. Não dá para viver da crítica literária, por mais que se veicule uma por semana no jornal. Tem que ter outra ocupação. Só alguns tradutores conseguem viver unicamente disso, por quantidade ou qualidade.

PLANOS: Recentemente, fiz um trabalho de preparação para uma editora, que é como uma mediação entre o tradutor e o revisor. Eu deixo o texto limpo, basicamente. Não sei se isso vai continuar ou se foi uma atividade pontual, vamos ver. No futuro, talvez eu tenha que diminuir o ritmo das resenhas para poder dar aula, isso vai acontecer de alguma forma. Eu me vejo como professora de literatura. Eu gosto da Filosofia, para mim, ela é uma forma de chegar à literatura, mas não sei se trabalharia com ela.

ARREPENDIMENTO: Tem uma coisa da qual me arrependo: a crítica de O círculo. Era para ser engraçada, mas peguei pesado demais. Eu usei uma piada para começar, disse que o que a gente tinha na mão não era o livro, era o rascunho. Só falei mal, não levantei nada de positivo, e os comentários foram horríveis, as pessoas detestaram a resenha, disseram que exagerei. Essa foi a pior experiência, mas também foi aprendizado. O humor não funciona quando as pessoas gostam muito de um livro.

Teve um outro episódio, também, com uma jornalista que criticou uma coletânea da qual participei, sobre 101 autores contemporâneos. A lista tinha apenas 14 mulheres, o que resultou em acusações de machismo. Eu defendi a publicação, disse que podia ter havido uma disparidade nos números, mas que nada era proposital. Sempre fui contra essa divisão da literatura, esse “leia mulheres”. Acho que isso é algo que o crítico tem que saber, tem que ler mulheres, tem que ler a diversidade. Parece que as pessoas estão querendo aplauso por uma coisa óbvia.

CONSELHOS: Não copie conteúdo nunca. Isso acontece muito, infelizmente. Tem gente copiando o release e tem gente replicando a cópia do release. Falta a crítica subjetiva, impressionista. Uma dica que ouvi em palestra do escritor Miltom Hatoum é “no início, não leia livros de crítica, leia literatura”. Quanto mais diversa ela for, melhor, pode ser clássica, contemporânea, em forma de ensaio, poesia, romance. Somente depois leia livros de crítica. Também acho importante ter um domínio próprio na internet. Esse é um investimento que valoriza o trabalho, assim como optar por um layout limpo, que evidencie a resenha. Anúncios poluem a página. Por último, não corra tanto atrás de parceria, pois isso pode acabar tolhendo a naturalidade de escolha da leitura. Estar muito atrelado à editora não é saudável.

EM POUCAS PALAVRAS

Um escritor: Philip Roth.

Um personagem: Nathan Zuckerman [The Ghost Writer, Philip Roth].

Uma crítica feita por mim: Um outro amor, de Karl Ove Knausgård.

O leitor ideal: o que não tem preguiça.

A literatura: é essencial, eu diria, mas muita gente vai discordar.

A crítica literária: me parece cada vez mais necessária, mas não é bem o que a gente vê.

O retorno positivo dos leitores: é ótimo!

O retorno negativo dos leitores: me ajuda a melhorar, a encontrar o tom certo.

*Nomes de empresas e instituições mencionados na entrevista foram preservados a pedido de Camila.

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