Me. Marta Kerkhoff

Bate-papo com a Mestre ​Marta Kerkhoff sobre suas experiências internacionais e seus estudos em micropaleontologia!

Mestre Marta Kerkhoff, ex-aluna da UNISINOS, graduada em Biologia e mestre na área de geociências (Geologia), desde pequena foi fascinada pelas bizarrices do mundo vivo, como medusas que vivem para sempre, peixes abissais e coisas assim… Quando tinha uns 10 anos de idade, assistiu um documentário que a impactou lhe afetando até hoje. Não se recorda do nome, mas de acordo com Marta, era um documentário sobre a então chamada Explosão do Cambriano, quando na época (final dos anos 80 e começo dos 90) se acreditava ter sido a primeira vez que os animais davam o grande passo em direção à gigantesca diversidade de formas e funções que temos hoje no planeta.  

“Este momento da História da vida foi tão marcante e único porque, pela primeira vez, a vida testava uma miríade de formas fantásticas e aberrantes como pouco se viu já que, desde então, a fauna tem mais ou menos a mesma cara. E isso foi a 541 milhões de nãos atrás, mais ou menos. A Explosão do Cambriano foi quase como um “flash” na história da vida, pois a medida em que aumentavam as disputas por recursos, sob ação da seleção natural, as formas aberrantes foram dando lugar aos designs mais dinâmicos e melhor adaptados ao meio ambiente. É como acontece ainda hoje numa escala menor, quando animais em ilhas ausentes de predadores e de pressão seletiva, acumulam bizarrices após algumas gerações de calmaria. A vida tem espaço e liberdade para experimentar, daí as formas bizarras aparecem. Vemos isso em Madagascar e nas ilhas da Oceania antes dos europeus aportarem por lá.” 

Marta sempre foi uma entusiasta da enorme variedade da vida, mas por causa desse documentário, gosta de imaginar que já era aspirante a paleontóloga antes de ter sido qualquer outra coisa na vida. 

Qual seu enfoque principal de pesquisa no momento? Em qual projeto está vinculada? 

Marta: No momento eu estou na metade do doutorado, como parte de um projeto que envolve a caracterização de estruturas diminutas presentes nas carapaças ou, tecnicamente, testas, de organismos marinhos também diminutos, os foraminíferos. Estas estruturas são microperfurações com limite de até 1mm de diâmetro provocadas por microrganismos. Esses pequenos seres, os foraminíferos, habitam desde a superfície da água até profundidades abissais. O que os tornam perfeitos arquivos, em tamanho compacto, das mudanças que acontecem na água dos mares e oceanos. Como eles constroem suas carapaças a partir de minerais secretados ao redor do seu corpo, a carapaça se torna substrato de perfuração por microrganismos que usam as (micro) cavidades como abrigo, por exemplo. É um pouco complicado de visualizar a imagem, mas podemos usar como analogia os buracos que os ouriços-do-mar fazem nos rochedos para se proteger. No caso das microperfurações, o buraco e os canais seriam algo em torno de 400 vezes menor e o rochedo, neste caso, a carapaça.


Carapaça de foraminífero (detalhe) com tubos microscópicos preenchidos com resina, mostrando uma pequena rede de câmeras interligadas por canais característicos de fungos microscópicos. Barra correspondem a 50μm, e aumento superior a 420 vezes usando microscopia eletrônica de alta resolução. 

Meu trabalho é averiguar como elas poderiam estar relacionadas com o ambiente onde os foraminíferos iam no passado e como respondiam às mudanças ambientais. As amostras do doutorado provêm da época em que o continente estava coberto por um mar, com um canal para o oceano aberto (como é hoje o Mediterrâneo). O ambiente em si seria muito instável, mais sujeito a oscilações que um mar abertoEsse ambiente estressante é muito interessante de ser verificado, uma vez que podemos visualizar muitas mudanças ecológicas num curto (geológico) período.

Entre as diversas áreas de estudos que a paleontologia abrange por que a escolha em estudar a paleobotânica na graduação e no mestrado?  

Marta: Eu trabalhei com Paleobotânica na graduação e no mestrado, sob orientação da Professora Tânia Dutra do curso de Geologia, UNISINOS. Eu achava interessante quando ela dizia que, como as plantas não podem “fugir” das mudanças climáticas, elas têm que responder na forma de alguma adaptação. E é fascinante como dentre espécies de um mesmo gênero, é possível encontrar variações morfológicas gigantes em resposta às mudanças do ambiente em que elas vivem! 

Um outro divisor de águas foi o material que descrevemos durante meu mestrado, uma forma rara de preservação tão perfeita que, mesmo após alguns 200 milhões de anos ainda nos permite visualizar estruturas delicadas que normalmente se perdem no registro fossilífero. Uma verdadeira janela para o passado! 


Corte transversal mostrando como a crosta envolve proporcionalmente fóssil de planta. Créditos das imagens: Ronaldo Barboni. 

Qual foi a sua mais significativa descoberta envolvendo a tafonomia, fossildiagênese e/ou geobiologia de plantas?  

Marta: Estes fósseis e sua jazidas já eram conhecidos há uns 20 anos no Rio Grande do Sul, embora o mecanismo de preservação ainda era desconhecido. Lá por volta de 2015 a professora Tânia me sugeriu este projeto de mestrado com a tafonomia deste material focando na preservação, à luz de uns trabalhos na Argentina que citavam o envolvimento de microrganismos no processo de fossilização. Estas amostras já tinham sido classificadas quanto à taxonomia e, somando o enorme acervo de imagens mais algumas estruturas estranhas que a Prof. Tânia e o pesquisador Ronaldo Barboni encontraram enquanto faziam microscopia deste material, havia uma certa suspeita de que microrganismos podiam estar envolvidos no processo de fossilização.


Superfície interna da crosta de ferro, que replica em negativo, a superfície da planta, as células epiteliais neste caso, criando um molde, quase como a massa de modelar pode fazer. Escala da imagem = 10μm. Crédito da imagem: Ronaldo Barboni. 

O Ronaldo me passou a bibliografia que ele tinha separado e foi como vislumbrar um pequeno universo à parte, dentro do estudo de fósseis, que eu nunca havia tido contato antes. Mas a imagem mais surpreendente para mim foi quando fazíamos o escaneamento (com auxílio de um microscópio especial que aumenta imagens em até 5000 vezes) de uma parte do ramo de conífera. O Alisson Martins, que fez a geoquímica destes fósseis e eu, estávamos de olho na tela do computador que transmite as imagens do microscópio. Dentro de um dos vasos condutores de água, apareceram uns tubos muito pequenos! O que aquelas estruturas estavam fazendo ali? Passando por alguma bibliografia vimos que algumas bactérias de água doce produzem tubos semelhantes e que são até comuns no registro fóssil. Estávamos diante de uma evidência. As mesmas estruturas achamos dentro de uma planta que caiu num corpo d’água 200 milhões de anos atrás, antes dela fossilizar! É uma imagem contundente do envolvimento de microrganismos na preservação de fósseis excepcionais. O envolvimento destes organismos limita e implica a forma como mecanismo funciona. Em tafonomia, a parte da paleontologia que estuda o processo de fossilização antes do soterramento final do organismo, chamamos este tipo de ocorrência de “janela tafonômica”. As “pistas” eram claras; um tipo especial de mucilagem, o EPS (Exopolissacarídeos), secretado por algas microscópicas de água doce envolveu como uma luva os ramos das plantas que caiam na água, criando o precursor do que seria a crosta sólida em torno dos restos vegetais e estas crostas, que ainda estão presentes no material, foram responsáveis pela preservação excepcional destes fósseis. Este mecanismo de “enluvamento” já era até descrito para o ambiente marinho, mas não para água doce.


Vista geral de um pequeno ramo de conífera recoberto por crosta de ferro. 

No seu mestrado você estudou os processos de uma fossilização que “guarda” as estruturas celulares de plantas do triássico. Qual é a emoção que sentiu em presenciar uma preservação tão excepcional de plantas tão antigas?  

Marta: É uma sensação única abrir uma rocha e encontrar dentro dela um fóssil que sentiu a luz do sol pela última vez a milhões de anos atrás. A primeira vez que vi este material foi durante a graduação, pois o afloramento de onde veem faz parte da rotina de campo da Geologia e da Paleontologia da UNISINOS. Eu fui inúmeras vezes ao local como monitora da disciplina de Paleontologia e era impossível não se maravilhar como se fosse a primeira vez. É realmente uma visão impressionante, a crosta de ferro envolve o ramo das plantas tão delicada e profundamente que replica na sua superfície externa, a superfície externa da planta dentro dela, e na superfície interna, a superfície da planta que está diretamente em contato com ela! E ver esse material aumentado 200X, 400X, aquelas linhas e formas tão frágeis, tão antigas, e ainda assim tão semelhantes ao que temos nos livros de taxonomia de plantas atuais é algo que nos transporta, como uma fotografia.


Detalhe das camadas onde estes fósseis são encontrados. Crédito da foto: Ronaldo Barboni.

É didático, inspirador e emocionante ao mesmo tempo. E conhecendo um pouco de geologia a gente aprende e cria a noção de que a informação se perde mais e mais à medida que o tempo passa, isso é natural. Mas quando nos deparamos com preservações excepcionais, como estas plantas que encontramos no Rio grande do Sul, até a imaginação fica confusa, por causa da ideia de tempo profundo. Afinal, mais de 200 milhões de anos nos separam das margens do rio onde estas plantas viviam! Como pode ainda, após tanto tempo haver informação tão bem preservada? Eu cheguei a mostrar algumas imagens para o pessoal da minha família e me deparar com a imagem quase infantil de curiosidade e fascínio. Impossível não ficar boquiaberta diante de tamanha complexidade, delicadeza e beleza, e mesmo depois do mestrado, quando terminamos este projeto, fica aquela sensação de temos muito que aprender sobre fósseis. 

“Mas quando nos deparamos com preservações excepcionais, como estas plantas que encontramos no Rio grande do Sul, até a imaginação fica confusa, por causa da ideia de tempo profundo. Afinal, mais de 200 milhões de anos nos separam das margens do rio onde estas plantas viviam!”

Como é ser bolsista de pós-graduação brasileira em um país estrangeiro? Conte-nos sua experiência de estudo no Instituto de Geociências da Faculdade de Ciências da Charles University (Univerzita Karlova)?   

Marta: O governo tcheco tem este programa para alunos estrangeiro de fora da União Europeia, o Programa Star Natur, o mesmo que me trouxe aqui. E existe uma grande infraestrutura para estudantes. Quanto ao trabalho, a pesquisa científica tem uma forma padrão que é usada em todo o mundo, pra poupar trabalho e todo mundo se entender então tu tens mais ou menos ideia do que esperar e do que fazer. Mas a grande mudança mesmo diz respeito ao objeto de estudo; eu sempre trabalhei e estudei ambientes sedimentares e fosseis de ambiente fluvial, continental. Aqui o ambiente de estudo neste projeto é o marinho. Dá um nó no cérebro as vezes! Outra coisa fascinante é a diferença de tempo (recente); aqui eu trabalho num edifício do século 15! Minha noção de tempo fica até abalada, num bom sentido!


Participação em Dni Geologii (literalmente “Dias de Geologia” em polonês), é o equivalente à nossa Semana Acadêmica, mas voltada também para alunos de pós-graduação. 

De modo geral, os tchecos são bastante fechados. Mas, quando se abrem para uma conversa, gostam de falar de sua cultura e história. Bom, acho que nós brasileiros somos assim também, vai ver estes sejam bons tópicos para começar uma conversa com qualquer estrangeiro! O bom é que brasileiros tem uma imagem positiva por aqui até com outros estrangeiros. Em qualquer lugar que eu vá, ou mesmo quando estou com algum problema, eu apelo para nacionalidade e na grande maioria das vezes, vejo um sorriso se estampar no rosto da outra pessoa, acompanhado do nome de alguma cidade brasileira, ou mesmo alguma saudação amistosa em português. 

Você vislumbra continuar seus estudos acadêmicos em outros países estrangeiros?  

Marta: Sim, com certeza sempre que houver a possibilidade. É uma oportunidade incrível, um privilégio como experiência.

O que você mais se orgulhou de realizar até agora em sua caminhada acadêmica?  

Marta: Eu acho que de tudo que fiz, trabalhar com a tafonomia e a ação dos microrganismos foi crucial na minha vida por me dar uma dimensão. Antes da pós-graduação, eu estava afastada da academia por mais de 5 anos e no ritmo em que a informação é produzida nos dias de hoje, a gente se defasa muito rápido. E eles, os microrganismos, mesmo tão minúsculos podem promover grandes mudanças físicas e químicas em seu meio e de quebra, ainda nos dão paramentos sobre o que esperar para ver em outros planetas! Não estou tentando fazer analogia dos pequenos organismos nos ensinando grandes lições apesar de soar desta forma, haha! 

Eu tenho muito orgulho dos avanços que fizemos neste tema que é ainda bastante incipiente nos meios acadêmicos brasileiros. A professora Renata Netto (UNISINOS) aborda nas disciplinas algumas consequências da ação desses organismos como a estabilização do substrato e a preservação de estruturas sedimentares e a descrição destas estruturas. Foi pioneira ao abordar o tema em suas aulas, de espalhar a ideia de que microrganismos tem sim a função de mudar o ambiente físico e químico à sua volta e isto tem implicações globais. Eu tive o privilégio de ter contato com a Profa. Míriam Pacheco, da UFSCar e a Profa. Anelise Rumbelsperger da Universidade Federal do Paraná e dos projetos incríveis que elas mantêm na área da geobiologia. E descrever o mecanismo de ação de microrganismos (e das estruturas complexas produzidas por eles) que contribuiu de forma tão contundente para que estas plantas de um passado tão longínquo se tornassem fósseis excepcionalmente bem preservados ainda me faz sorrir a noite, alguns dias. Me lembro que o ambiente de preservação era oxigenado demais, mais do que “pedem” e ensinam os manuais no quesito boa preservação. Fizemos algo novo, com certeza. Tenho muito orgulho de fazer parte disso. 

Para você qual é a importância do conhecimento de paleontologia na sociedade como um todo?  

Marta: É um pouco clichê mas o conhecimento do passado nos ensina e nos mostra a história do nosso planeta, o que podemos e devemos evitar no futuro. Porque mares se formam e se fecham, o clima sempre foi assim e se é assim, desde quando. Nos ensina que a vida é plástica, mas também é finitude. Vida é mudança, é movimento. A paleontologia nos dá dimensão de tempo da vida, em todas as suas infinitas e tão variadas formas.

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